Saramago: A Ironia contra o Poder

Autoria: Amanda Nogueira, graduanda em Letras (2º semestre, 2024.2) – UFGD

Provavelmente você já deve ter ouvido falar, pelos mais velhos, que “política e religião não se discute”, não é mesmo? Isso porque ambos os assuntos, em toda a construção da nossa sociedade, sempre foram intimamente relacionados entre si e considerados um grande “tabu” para os mais tradicionalistas. A história da religião reconta, inevitavelmente, a história do surgimento de uma política social hierárquica que se concretizou com o passar dos anos e, tendo como base esse polêmico assunto, José Saramago observou uma excelente oportunidade de questionar as estruturas de poder, os dogmas religiosos e as narrativas dominantes, por meio da paródia presente em seus romances.

Dessa forma, esse artigo de divulgação científica busca divulgar o projeto de pesquisa “A ficção possível: Leituras da narrativa portuguesa contemporânea” do Professor  Dr. Gregório Foganholi Dantas, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em que o pesquisador passa a refletir sobre a literatura portuguesa ligada ao conceito pós-moderno de paródia. Essa reflexão se encontra nos seguintes artigos publicados pelo prof. Gregório: Paródia e dessacralização em O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim, de José Saramago; Tempo de deserto: literatura e engajamento em Claraboia, de José Saramago; A Segunda História: Considerações Sobre Romance Português Contemporâneo. A partir dessas leituras é possível entender a reinterpretação social e histórica proposta por Saramago, além de observar como a literatura questiona a realidade por meio do texto literário.

Fonte: Imagem gerada pela IA Adobe Firefly.

Vamos compreender, primeiramente, o que é a paródia e como ela pode “zombar” das estruturas de poder vigentes. Na atualidade, com as mídias e canais de comunicação cada vez mais fundamentais em nossas vidas, nos deparamos com inúmeras releituras cômicas de momentos históricos que sequer notamos que são paródias como, por exemplo, a famosa série de televisão americana “The Simpsons”, em que seus episódios, frequentemente, satirizam eventos da cultura pop, filmes, séries e até mesmo figuras públicas, por meio de um processo que a literatura reconhece como intertextualidade, ou seja, uma conversa entre dois textos.

Apesar da imitação e ridicularização que “The Simpsons” constrói sob alguns acontecimentos da realidade, o processo paródico é complexo e vai além da visão de uma simples reprodução de escárnio. Nesse processo, se estrutura um fundamento essencial que chamamos de ironia – responsável por criar uma distância crítica entre o texto paródico e o texto original – que incentiva o leitor a reinterpretar a obra parodiada. Desse modo, a paródia não se trata de uma simples releitura feita para dar risada, mas de um procedimento relacionado à estética do texto que leva o leitor a rever sua visão crítica sobre a obra original.

 

Os artigos citados demonstram que, nas obras de Saramago, a definição de paródia não é muito diferente. Em seu primeiro romance intitulado Claraboia, situado dentro de um contexto literário conhecido como neorrealismo – movimento artístico que ocorreu no século XX, entre os anos de 30 e 50 e caracterizado por denunciar nas obras de seus artistas os problemas sociais ocasionados pelo regime político da época – já era possível observar os primeiros passos do autor em direção às paródias do movimento literário seguinte, ou seja, o pós-modernismo, marcado pelo pensamento da diversidade cultural e social. De qualquer forma, mesmo a paródia não sendo algo explícito nessa obra, a crítica ao indivíduo alienado e ao poder são fortes indícios que podem explicar o rumo que Saramago deu em seus romances posteriores. Podemos considerar, dessa forma, que Claraboia foi uma obra de transição, uma espécie de “busca de estilo” por parte do autor pois, mesmo sem se encontrar no neorrealismo, caminha em direção ao pós-moderno.

Em seus romances seguintes, agora propriamente escritos como paródias, Saramago utiliza a Bíblia como uma oportunidade para fazer uma crítica social e religiosa. Em “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim”, a paródia de Saramago não busca apenas o riso mas, principalmente, a reflexão crítica do leitor em textos sagrados. Além disso, sabemos que as escrituras bíblicas têm uma grande importância histórica e moral na sociedade, majoritariamente cristã. Assim, o romancista busca colocar a Bíblia na posição de documento literário e, nos livros citados, a ironia é utilizada para humanizar as figuras divinas, expor seus erros e questionar a autoridade do “todo poderoso”, tratando os sujeitos dessas narrativas como personagens fictícios. É quase como se Saramago tomasse a posição de um juiz e colocasse as “santidades” como réus no tribunal, valorizando os feitos pecaminosos e humanos, enquanto rebaixa e condena a onisciência divina. Desse modo, tira-se a Bíblia de sua função dogmática e a transforma em texto literário por meio da paródia.

De acordo com as pesquisas do professor Gregório Foganholi, nota-se que a tentativa de Saramago de formar um leitor com uma opinião mais crítica sobre aquilo considerado “inquestionável”, vem por meio de uma reconstrução da História pela ficção, com ênfase na desconstrução da narrativa oficial e na valorização dos excluídos e marginalizados em suas obras. Tudo isso, com uma grande pitada de ironia, sacrilégio e afronta ao poder.

As pesquisas demonstram que Saramago, em seus textos, condena aqueles indivíduos alienados e ignorantes que não buscam questionar os discursos de poder e que aceitam como verdade absoluta toda informação fornecida a eles. Sendo assim, não seria interessante se aprofundar um pouco mais nos assuntos discutidos aqui, ao invés de apenas tomar este artigo de divulgação científica como verdade absoluta? Para isso, recomendamos a leitura dos artigos originais que serviram de base para essa discussão, indicados nas referências. Eles oferecem um panorama mais aprofundado ao leitor, bem como fornecem dados fundamentais para o entendimento da paródia e dos processos que Saramago utilizava em seus livros. Afinal, você não quer ser um leitor alienado pelo poder, certo?

 

REFERÊNCIAS

BARONE, J. V. ; DANTAS, G. F. Paródia e dessacralização em O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim, de José Saramago. AFLUENTE, v. 5, p. 58-76, 2020.

DANTAS, G. F. Tempo de deserto: literatura e engajamento em Claraboia, de José Saramago. Navegações, v. 7, p. 175-182, 2014

DANTAS, G. F. A segunda história – a propósito da literatura portuguesa contemporânea. Investigações (UFPE. Impresso), v. 25, p. 137-162, 2012.