Brotero e a bananeira: reflexões sobre o fazer científico no século XVIII

Qual foi a planta de cujas folhas Adão e Eva fizeram suas roupas depois do Pecado Original? É estranho para nós, nos dias de hoje, pensar que esse tema possa ser objeto de investigação científica. Mas já foi no passado.

No texto bíblico (em Gênesis 3:7), afirma-se que Adão e Eva fizeram vestes com folhas de figueira. No entanto, Brotero não ficou muito convencido disso. Em seu “Compendio de Botanica” (1788), numa nota de rodapé à p. ix, assim ele afirma:

As folhas da bananeira (Musa paradisiaca, Lin.), planta propria dos climas do Tigre e Euphrates, e a cujos fructos alguns autores antigos chamaõ figos, foraõ provavelmente as que Adam empregou para fazer o sayotte com que se cobrio; ellas saõ de huma sufficiente solidez e algumas tem cinco pes de comprido e huma largura proporcionada; os fios tirados do corpo da planta podiaõ facilmente ser empregados para cozer as dictas folhas. Milton contudo foy de parecer que as folhas com que Adam e Eva se cobriraõ foraõ as da figueira de Bengala; mas isto he menos verosimil, visto que ellas tem, quando muito, oito pollegadas de comprido e tres de largo.

Esse trecho suscita muitas reflexões, entre elas as seguintes:

  1. A reflexão mais óbvia que se pode fazer é justamente sobre a relevância e a cientificidade da questão. Nenhum cientista do século XXI, por mais religioso que possa ser, entenderia ser relevante identificar a que variedade de figueira o autor do Gênesis estaria se referindo. Brotero, no entanto, não viu problema em analisar essa questão numa obra de caráter científico.
  2. Em segundo lugar, observamos outra característica do fazer científico de Brotero que seria praticamente inconcebível no século XXI: o autor não viu problema em “debater” suas ideias com um poeta, em vez de outro cientista. Milton, mencionado por Brotero, é o poeta John Milton (1608-1674), autor do poema “Paraíso Perdido”, que narra em versos algumas histórias do Gênesis. Ao narrar o trecho em que Adão e Eva costuram suas roupas (“Paradise Lost”, livro 9, versos 1100-1110), Milton descreve a árvore de onde eles tiraram as folhas (a figueira de Bengala); Brotero, por sua vez, acha “inverossímil” a narrativa poética de Milton (que, obviamente, por ser poética, não tem compromisso com a realidade dos fatos) e hipotetiza que a árvore seria, na verdade, uma bananeira.

Precisamos ser justos com Brotero: ele não foi o único a debater com Milton nem foi o único a propor que a árvore pudesse ser uma bananeira. Segundo Marissa Nicosia (no artigo “Milton’s Banana: Paradise Lost and Colonial Botany”, publicado em Milton Studies, 2017), o intelectual britânico Horace Walpole (1717-1797), contemporâneo de Brotero, teria proposto essa “hipótese” numa anotação feita à margem do seu exemplar do “Paraíso Perdido”. Não sabemos a data em que essa anotação foi feita e não temos como saber se Brotero já conhecia essa hipótese ou se chegou a essa conclusão sozinho (quem sabe algum(a) historiador(a) da ciência não investiga isso mais a fundo?). O mais interessante, de qualquer forma, é perceber que essa questão era realmente sentida como relevante para a intelectualidade da época, e que Milton era um autor considerado “referência” ou “autoridade” para tratar dessa questão.

  1. Brotero, nesse trecho, faz uma afirmação muito curiosa, que nos leva inicialmente a duvidar um pouco: ele afirma que os frutos da bananeira eram chamados de “figos” por alguns autores antigos. Para nós, leitores do século XXI, isso pode parecer absurdo, mas Brotero está certíssimo: é fato que a banana já foi chamada de “figo” em certa época. Podemos comprovar isso com o seguinte trecho da obra “Coloquios dos simples”, de Garcia de Horta (publicado em 1563 e consultável neste link): > […] e os figos na lĩgoa canarĩ, e decanim, e guzerate, e bẽgala se chama quelli, e os malauares lhe chamã palã, e o malayo piçã porque ẽ todas estas terras hos hà, e vos ponho ho nome nesas lĩgoas e tãbẽ os hà, e ẽ outras muitas o Arabio lhe chama musa ou amusa fazẽ delles capitulo Aviçena, e Sarapiã, e chamãlhe pollo mesmo nome, e raseis tãbẽ lhe chama pella [sic] mesmo nome tãbẽ ha estes figos ẽ guine, chamãlhes bananas. (p. 91 verso)

Os “figos” referidos por Garcia de Horta eram chamados, em árabe, de “musa”, forma esta que inspirou o nome científico da banana (Musa paradisiaca Linn.) e, na região do Golfo da Guiné, de “bananas”, ou seja, não há dúvidas de que eram a fruta que conhecemos atualmente por banana. Podemos supor que, no momento em que os portugueses e outros europeus entraram em contato com essa fruta até então desconhecida para eles, associaram-na aos figos, uma fruta já conhecida na Europa há séculos. O que motivou essa associação não está claro: teria havido variedades de banana semelhantes aos figos? Ou o contrário, variedades de figo semelhantes a bananas? Essa semelhança se daria na forma da fruta? No sabor? No cultivo? Fato é que alguma semelhança foi notada e a banana foi chamada de “figo” durante algum tempo. Uma pesquisa no Google nos levou a sites que afirmam que, no Caribe, até hoje bananas são chamadas de “figos” (cf., por exemplo, este: https://www.reddit.com/r/CaribbeanCuisine/comments/111la7j/do_you_refer_to_bananas_as_figs/).

  1. Fica evidente, pelo trecho apresentado, que Brotero era um criacionista, ou seja, ele acreditava que a narrativa bíblica do Gênesis devia ser lida como factual. Sabemos, pela sua biografia, que por pouco Brotero não foi ordenado padre; mas isso seria um mero detalhe. O fato é que todos os cientistas da época eram criacionistas, simplesmente porque não se concebia alternativa a essa “teoria”. Embora ideias evolucionistas já estivessem presentes desde a Antiguidade, a primeira proposta científica de uma teoria da evolução das espécies surge no início do século XIX, com a publicação das obras de Lamarck. Sabemos, também pela biografia de Brotero, que ele e Lamarck mantiveram uma amizade enquanto ambos viviam em Paris (aproximadamente entre 1778 e 1790). Mas o próprio Lamarck ainda era um criacionista, só tendo passado a admitir a evolução posteriormente (talvez a partir de 1802, com a publicação de sua obra “Recherches sur l’Organisation des Corps Vivants”). Assim, não deve causar espanto, em princípio, que os biólogos do século XVIII sejam criacionistas.

Em suma, esse e outros trechos da obra de Brotero nos fazem refletir sobre como era ser um cientista e como era fazer ciência no século XVIII. Ideias que hoje parecem ser consensos óbvios, como “uma verdade religiosa não deve ser considerada uma verdade científica” e “obras poéticas não são fontes seguras para um texto de ciência”, nem sempre foram assim; ao mesmo tempo, nos indagamos sobre se o fazer científico dos séculos futuros também não vai “dar risada” dos textos científicos de nosso tempo.